INOCENTIVS, EPISCOPVS
SERVVS SERVORVM DEI
AD PERPETVAM REI MEMORIAM
LITTERAE ENCYCLICAE
LIMITES LIBERTATIS
1. “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo me é permitido, mas eu não me deixarei dominar por coisa alguma” [1]. É assim, com a temperança que dá Cristo, que a liberdade enseja seus próprios limites. Sem esta, a boa medida, bom proceder, amizade, confiança e comunhão tornam-se impossíveis. Portanto, munido de minha autoridade apostólica, escrevo esta carta encíclica em fins de expor a medida dos atos humanos e a ordem moral que são sempre adidas à liberdade.
2. A liberdade (libertas, liberte, liberty, libertà, freiheit) congrega algumas concepções fundamentais caracterizáveis como: i) autodeterminação, dando margem à ausência de condições e limites; ii) possibilidade de escolha limitada e condicionada. Deste modo, o homem é livre e igual em dignidade a seu semelhante [2] e se lhe dá a possibilidade de liberar-se, sujeitar-se e viver conforme aprouver.
3. A liberdade traduzida como concepção absoluta e incondicional é a expressão de ser causa de si mesmo. Esta vontade de agir se segue conforme o arbítrio do ser, de modo tal que o escusa de parâmetro de suas ações. À não mesura disto contrapõem-se as virtudes, que humanizam o ser humano, pois que as virtudes e vícios dependem da ação do homem.
4. “Nas coisas em que a ação depende de nós a não-ação também depende; e nas coisas em que podemos dizer não também podemos dizer sim. De tal forma que, se realizar uma boa ação depende de nós, também dependerá de nós não realizar uma má ação” [3]. Esta noção se encontra no pensamento filosófico e literário de Cícero [4], Epicuro, Lucrécio [5] e demais filósofos do período clássico.
5. O pensamento escolástico, sob o termo “livre arbítrio”, também remonta às bases do conceito da liberdade. A liberdade não consiste somente em ter causa de seu próprio agir, mas também em sê-la. Ser livre, portanto, é não ser coagido por poder do outro. “O livre arbítrio é a causa do movimento porque pelo livre-arbítrio o homem determina-se a agir” [6]. Esta concepção de autodeterminação limita-se à existência da Primeira Causa, que é Deus.
6. Deus não é impeditivo das ações e determinações do homem, mas é medida e juízo para todas as coisas. Apesar disso, o homem, não sendo Primeira Causa, é, ainda, munido de auto causalidade. Deve-se lembrar sempre, porém, que a lei-preceito moral [7] e a capacidade de retidão devem estar sempre ligados à liberdade, ou então se cairá nos vícios e na falsa disposição de ser livre.
7. Devemos reconhecer que Espírito Paráclito envia seus dons e capacita o homem a toda boa obra [8], inclusive a como proceder à sua própria liberdade. O Senhor, portanto, mantém sua guia para todo o bom proceder de seu povo, jamais deixando-o à revelia de seu próprio e temerário coração.
8. A experiência cristã demonstra que através da gloriosa ressurreição de nosso Senhor [9], a possibilidade de ser livre é reavida pelos seres humanos, que a haviam perdido em meio à realidade do pecado. Ser livre no Senhor implica sujeitar-se a uma nova ordem, sujeitar-se à Justiça [10].
9. O homem que se sujeita à Justiça deve entender, porém, que os percalços que advém de sua própria natureza caída o seguirão, e só serão extirpados com o abandono total deste mundo, iniciando desde já aqui e completando-se na partida deste rumo à Beatitude com o Senhor. É necessário suportar tudo em total sujeição, tomando sempre cuidado com o terror da falsa liberdade.
10. A falsa liberdade (manca libertas) emerge do coração humano, que procura executar a vida boa e santificada por sua própria moção. “Não pelo poder, nem pela violência, mas sim pelo meu Espírito é que ele cumprirá a sua missão” [11]. Assim como a reconstrução do templo empenhada sob liderança de Zorobabel, a vida boa, santa e livre não se conduzirá através dos próprios caminhos.
11. A falsa liberdade cria delírios de onipotência e diminui a verdadeira liberdade, pois é efêmera. Assim, preferindo o proveito pessoal ao bem comum, a falsa liberdade não se preocupa com a lei de Deus [12], ao contrário, separa o homem da possibilidade de aceder a Deus, pois equipara-se à caída luciferina da vaidade. Portanto, a falsa liberdade é aquela que leva o homem ao pecado, à desobediência e à dissenção [13]
12. Esta vã liberdade (vana libertas) implica que o todo o modo de viver consiste em escolhas deficientes, privadas de fruto e bondade, uma vida sem conversão e relegada à libertinagem, libertarismo. Os extremos, por representarem a desmesura, devem ser evitados, porque são sinônimos de injustiça e desastre a si mesmos. Para uma vida boa, feliz e honesta, é necessária a predisposição da temperança.
13. A verdadeira liberdade permite que a vontade funcione à conveniência da retidão, sendo um dom sobrenatural e concedido por Deus a seus escolhidos. A graça na vontade restitui a retidão de agir. Esta liberdade cristã é um dom real e expressão do amor de Deus que suplanta a natureza pecaminosa do ser humano.
14. Assim, a noção da liberdade cristã (libertas christiana) trabalha a retidão de agir e, por conseguinte, da vontade, guiando o homem para as boas ações. Assim, o homem torna-se liberto dos medos, desejos e constrangimentos dos hábitos carnais. Contra a lei do pecado estabelece-se a lei e preceito divino, que impele o homem a não viver de forma desobediente, desregrada e pecaminosa.
15. Assim, a vida plena de liberdade implica no exercício da fé e no seguimento do caminho da Vida de forma concisa e humilde. Aí há plenitude, que se move em direção a Deus, regrando-se em obediência à Igreja, participante do Corpo Místico, e vivendo o caminho da Salvação. Essa plenitude consiste na libertação do orgulho, da concupiscência, da efemeridade (e dos bens mutáveis), formas de sofrimento e escravidão as quais o homem sempre quer se sujeitar, por força do pecado.
16. O clérigo, na realidade virtual, deve compreender os limites de sua liberdade temporal e sua necessidade de atrelar-se à sujeição e à Igreja, independentemente de seus preceitos. “Faça-se em mim conforme a tua vontade” [14], é a verdadeira face da liberdade e da sujeição. Com o aceite do compromisso e da finalidade, há maior liberdade.
17. Sem comprometimento, compromisso, não há liberdade, pois que a verdadeira liberdade se encontra na sujeição à lei divina e ao seu maior exemplo na consumação da vontade de Deus em nosso Senhor Jesus Cristo [15]. A sujeição à finalidade e a exigência da inteligência ordenadora (Deus) faz com que o homem possa despojar-se dos seus vícios, aceder às virtudes e cumprir o seu fim de viver bem, livre e unido a Deus.
18. Assim, demonstra-se que a liberdade se diferencia da falsa liberdade, que é vã e parca, e que demonstra a grande pretensão, mas a pequenez do ser humano. A verdadeira liberdade encontra-se na sujeição à nova lei, lei da justiça: liberdade cristã.
19. Preze o clérigo pela prudência de seus atos e entenda o limite da liberdade delimitado pela força do Espírito em sua Igreja, que detém seus meios suplementares e constitutivos, para bem exprimir, segundo a doutrina [16], que seja a liberdade.
20. Enfim, sustentado pela segurança do auxílio divino, confiando em vossa fortaleza e sujeição, a todos damos, veneráveis irmãos, do íntimo do coração, assim como a todo clero, e ao povo confiado ao nosso cuidado, a bênção apostólica, como prova dos bens celestes e testemunho de nosso particular afeto.
Dado em Roma, junto a São Pedro, no vigésimo dia de outubro do ano do Senhor de dois mil e vinte e um, segundo do nosso pontificado.
+INOCENTIVS, Pp. VI
PONTIFEX MAXIMVS
REFERÊNCIAS:
[1] cf. I Cor. 6, 12.
[2] cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, art. 1º.
[3] cf. Ethica Nicomachea, Aristotelis Opera Omnia, III, 5, 1113b 10.
[4] cf. De fato, Ciceronis Opera Omnia, II.
[5] cf. De rerum natura, Lucretii Opera Omnia, II, 260.
[6] cf. Summa Theologica, St. Thomae Aquinatii Opera Omnia, II, 16, 1.
[7] “Faze o bem e evita o mal”, é a resolução da máxima moral encontrada no Doutor Angélico.
[8] cf. II Tm. 2, 7; 3, 17.
[9] cf. At. 2, 22-24.
[10] cf. Rm. 6, 13-23.
[11] cf. Zc. 4, 6.
[12] cf. De Doctrina Christiana, St. Augustini Hipponensis Opera Omnia , III, 28-29.
[13] cf. St. Augustini Hipponensis Opera Omnia , vera rel. 76; ep. 173; civ. 11,16; 13,13; 14,15; c. ep. Pel. 2,6; nupt. Et. Conc. 1, 7.9.
[14] cf. Lc. 1, 26-38.
[15] cf. S. Mt. 26, 39.
[16] cf. Tito 2, 1